top of page

Maquetes e Segredos PT.1 - Histórias dos Desbravadores de Pesadelos

"Eu queria tirar isso de mim. Essas histórias, esses personagens mereciam viver. Toda história merece ser contada"

Faculdade Unip - Paulista 21h49 da noite
Faculdade Unip - Paulista 21h49 da noite

Camila, já havia perdido a conta de quantos Mergulhos e dores havia suportado. No entanto, o "cheiro" de dor vindo de alguém tão jovem a perturbava profundamente, mesmo enquanto ela girava e girava seus cabelos pretos e encaracolados, incapaz de relaxar.


Desde que começou a focar nas emoções alheias, buscando cada nuance, ela havia deixado de lado seu chá de ameixas. Com as mãos apoiadas nas pernas cruzadas sob o vestido florido, a cabeça baixa, ela contava o tempo, sua sandália batendo ritmadamente no chão a cada poucos segundos.


Após examinar o sexto cliente, seus olhos se arregalaram de repente, fixando-se no estudante de arquitetura isolado atrás dela. Ele estava cercado por plantas baixas azuis, um laptop com pelo menos sete guias de pesquisa abertas e várias xícaras de café vazias.


As olheiras do garoto marcavam seu rosto pálido a cada vez que ele passava a mão nos olhos. A camiseta amassada e os cabelos despenteados denunciavam as longas horas dedicadas aos estudos, com um semblante de exaustão que parecia permanente. Ele mal piscava, a atenção fixada na tela iluminada, até que um suspiro pesado e quase inaudível escapou de seus lábios. Ele esticou os braços para trás da cabeça, estalando as costas, antes de voltar a digitar furiosamente.


— Então é ele ali? — A voz do colega de lanche a tirou de sua busca e a trouxe de volta à realidade.


Ela fez que sim com a cabeça, ainda encarando seu alvo.


— É ele mesmo. A energia dele está quase se partindo, o Carrasco deve estar bem avançado agora. Como não percebemos isso crescendo tão perto das nossas salas? Viemos aqui quase todo dia...


O processo de Incubação era sutil até não ser mais, mas para um Desbravador treinado, os sinais eram claros como o dia, o que deixava Mila ainda mais decepcionada consigo mesma. De novo.


— Bom, não precisa ser um gênio pra saber que aquele cara tem problemas. — Ronaldo começou. — Quer dizer, olha só pra ele. Postura de derrota, coluna gamer igual a letra C... Os olhos parecem que ele está fazendo cosplay de Batman. Viu o jeito que ele pega o copo? Está tremendo. Se eu não soubesse o que procurar, diria que é Burnout, que ele tem uns três empregos ao mesmo tempo ou é só louco.


Ela se virou para ele e deu um cutucão gentil e repreensivo em seu ombro, podendo encará-lo nos olhos agora e enfatizando cada palavra.


— Seja. Mais. Gentil... Você sabe que não julgamos a dor alheia. Nada de loucos, malucos, nem nenhuma palavra desse tipo. Não no nosso mundo.


Ronaldo era como Mila, mas não compreendia as energias do Mundo dos Sonhos da mesma forma. Ele não sentia a dor, ele a identificava. Era condicionado a suportá-la, como um Realista deve fazer, algo que ele fazia muito melhor que ela.


Ronaldo era um homem alto, de pele branca, cabelo grande repartido ao meio e caído na frente, curto atrás, com as laterais raspadas. Usava geralmente roupas mais justas, como a camisa social vermelha, calça preta e sapatos de corrida vermelhos, o que lhe dava um ar de advogado esportista da Red Bull, a imagem que ele desejava transmitir. Tinha olhos castanhos e um pouco caídos, mas Mila entendia muito bem o porquê.


Ronaldo deu de ombros para o gesto, uma resposta para quase tudo que ele entendia ou não queria responder.


Alheio a tudo, e quase como se sentisse o peso dos olhares, o garoto que observavam virou a cabeça na direção deles no exato momento em que voltaram a encará-lo. Por um segundo de estranheza com o grupo, seus olhos cansados se arregalaram com um flash de paranoia antes que ele desviasse o olhar bruscamente, fingindo ler o cardápio sobre a mesa.


— Ele nos sentiu. — Ronaldo afirmou.


— Não dá pra ter certeza, o Pesadelo tava debaixo dos nossos narizes há não sei quantas semanas.


Mas seu companheiro continuou olhando para as costas do garoto.


— Tô te falando, senti um arrepio agora. Não podemos perder tempo, porque afinal de contas já achamos ele, precisamos lidar com isso de um jeito ou de outro. Se aquela coisa se soltar aqui no campus, vai parasitar um monte de gente.


Ela concordou com um aceno curto, engolindo em seco.


— Um Pesadelo solto na galera do curso de TI... — Ele esticou as costas olhando para o teto. — Faria um estrago... Não vamos deixar isso acontecer. Você vai primeiro?


Mila se levantou depois de confirmar, cada passo era leve, projetado para não intimidar, como já havia feito várias vezes com Ronaldo ou junto dos outros.


Seu companheiro levantou-se logo depois, um guardião silencioso, posicionando-se sutilmente um pouco mais atrás dela.


Ao chegarem à mesa, Mila sorriu:


— Oi! Desculpa incomodar — disse ela —, mas sua maquete é incrível. Arquitetura?


Leo se assustou com a aproximação, piscando como se estivesse saindo de um transe. Seus olhos encontraram os de Mila, e por um instante, a muralha de exaustão que ele construiu ao seu redor pareceu vacilar.


— Ah... sim. É arquitetura. Projeto final.


A voz dele era fraca, quase um sussurro. Ela se inclinou levemente, ignorando as xícaras sujas para admirar a maquete, seu interesse era palpável.


— Projeto final? Uau, deve ser uma pressão enorme. Meu nome é Camila, mas todo mundo me chama de Mila. — Ela gesticulou com a cabeça para o homem de pé atrás dela. — E esse é o Ronaldo.


Ronaldo apenas acenou com a cabeça, um gesto curto e contido. Leo retribuiu, um pouco sem jeito.


— Sou o Leo. Isso aqui é meio que meu mestrado, ou estou tentando finalizar. A última etapa para virar projetista e responsável pela criação de todas as estruturas, se tiver forças de terminar...


— De pressão eu entendo. Às vezes eu fico tão ansiosa quando as pessoas passam na floricultura, param na vitrine e não entram. Às vezes eu sinto que a frente da loja está feia e corro para trocar as mudas que estão lá, coisa de doida mesmo. — Ela deu uma risadinha. — Mas isso aqui... — ela gesticulou para a maquete — ...é incrível. Tem tanta paixão em cada detalhe.


A palavra "paixão" fez Leo recuar, como se fosse um termo proibido. Um sorriso amargo e cansado surgiu em seus lábios.


— Lidar com plantas deve ser mais tranquilo. Infelizmente, paixão não paga as contas. Nem entrega o projeto no prazo. O que resta é só pressão. E pagar boletos.


Ele soltou uma risada curta e sem humor. Aquilo não a enganava. Para Mila, uma Consoladora nata, aquele humor autodepreciativo era um alerta vermelho gritante.


Ronaldo permanecia em silêncio, um passo atrás, sua presença uma promessa silenciosa de segurança, permitindo que Mila fizesse seu trabalho.


Ela apontou para a cadeira ao lado dele, e ele prontamente respondeu:


— Claro, claro. Desculpe por não oferecer antes.


Ela se sentou ao lado dele, afastando um pouco das coisas.


— Às vezes eu fico tão ansiosa que acho que as samambaias estão me julgando se eu demoro para regar. — Ela deu uma risadinha, criando uma ponte de vulnerabilidade compartilhada. — Mas o medo não pode ser maior que o motivo pelo qual você começou, não é?


Foi nesse momento que aconteceu. A pergunta de Mila, cheia de uma esperança quase inocente, atingiu algo profundo. A lâmpada sobre a mesa de Leo piscou violentamente. A sombra dele se alongou na parede, e por uma fração de segundo, assumiu a forma de uma figura alta e julgadora que parecia curvar-se sobre ele. Um Vazamento mais forte.


Mila sentiu a mudança instantaneamente. Seu sorriso amigável desapareceu, substituído por uma expressão de foco e liderança. Ela trocou um olhar rápido com Ronaldo. Era a hora.


— O que vocês querem realmente? Desculpa, não quero ser grosso nem parecer um idiota... Só é estranho duas pessoas me abordarem assim do nada.


A risada nervosa veio novamente. Ela se voltou para Leo, sua voz agora suave, mas carregada de uma autoridade tranquila.


— Leo... o que você cria é lindo. Esse peso que você sente, ele não é seu.


Ela estendeu a mão, não para tocá-lo ainda, mas como um convite.


— Nós podemos te ajudar a se livrar dele. Mas você precisa nos deixar entrar.

Leo a encarou, seus olhos cheios de dúvida, mas também de um pingo de esperança. Ele deu um aceno quase imperceptível. Foi o suficiente.

A realidade se partiu. A pergunta de Mila não foi apenas uma oferta, mas um comando que ressoou na alma de Leo. A cafeteria não desapareceu; ela se estilhaçou como um espelho, e os fragmentos do mundo real foram sugados para dentro de um vórtex centrado em Leo. 

— Nós podemos te ajudar a se livrar dele. Mas você precisa nos deixar entrar.

Leo a encarou, seus olhos cheios de dúvida, mas também de um pingo de esperança. Ele deu um aceno quase imperceptível. Foi o suficiente.

A realidade se partiu. A pergunta de Mila não foi apenas uma oferta, mas um comando que ressoou na alma de Leo. A cafeteria não desapareceu; ela se estilhaçou como um espelho, e os fragmentos do mundo real começaram a sugados para dentro de um vórtex centrado em Leo.

Mila virou para trás para avisar, mas seu parceiro já estava ao lado dela, segurando seu braço firme junto ao de Léo, dando um aceno de cabeça confiante.

Ela sorriu pra ele, se deixando ser tragada para a correnteza de memórias e emoções, mergulhando de cabeça no pesadelo que os aguardava.

Leo fixou os olhos nela, um misto de dúvida e um fio de esperança em seu olhar. Ele assentiu, um movimento quase imperceptível, mas suficiente.


A realidade então se estilhaçou. A pergunta de Mila não fora apenas uma oferta, mas um comando que ecoou na alma de Leo. A cafeteria não desapareceu; ela se partiu como um espelho, e seus fragmentos começaram a ser sugados para um vórtex que se formava em torno dele.


Mila virou-se para avisar, mas seu parceiro já estava ao seu lado, segurando firmemente o braço dela e o de Leo, com um aceno de cabeça confiante.


Ela sorriu para ele, deixando-se levar pela correnteza de memórias e emoções, mergulhando de cabeça no pesadelo que os aguardava.


Desbravadores de Pesadelos continuará

Comments


bottom of page